Há algumas quadras de onde estou localizado tem uma casa que é
conhecida pela sua má fama. Segundo se comenta, lá as mulheres executam uma
estranha e imoral profissão. Ouvindo esses comentários, conclui que estas
mulheres deviam ter um caráter perverso sem nenhuma possibilidade de algum raio
de luz penetrar em seus negros corações.
A minha curiosidade aumentava a cada dia e gostaria de poder ouvir
pelo menos uma vez uma ligação feita no meu aparelho por uma delas. O que
passaria naquelas cabeças? Seria mesmo verdade que a maldade ali encontrava
guarida permanente? Elas seriam realmente felizes tendo tanta maldade dentro do
coração? Meus circuitos quase chegavam a entrar em curto com tantas dúvidas e
questões.
Certo dia fui acionado por uma mulher muito bonita de vinte e
poucos anos, cabelos dourados e dona de uma cútis invejável. No início pensei
ser apenas mais uma jovem cheia de vitalidade a usar os meus serviços, mas ouvi
alguns maldosos comentários de algumas pessoas que passavam por mim “Essas
mulheres da vida não sabem mesmo o seu lugar, insistem em frequentar lugares
impróprios a sua conduta”. Pensei com meus circuitos naquele momento: “Mas que
lugar impróprio seria este a que elas se referiam? Sou público e devo servir a
todos independente de tudo!”. Confesso caro leitor, que nunca tinha ouvido
tamanha besteira em toda a minha vida de “orelhão de rua”.
Logo concluí que o meu desejo estava prestes a se realizar, pois
ali estava umas das mulheres de que tanto ouvira falar e que, certamente, através
daquele diálogo que estava prestes a ter início, poderia conhecê-la.
Ao invés de retribuir as ofensas daquelas pessoas, a moça as olhou
tristemente e nada respondeu. Voltou-se para o meu aparelho e discou o número
desejado:
- Alô, de onde fala?
- Aqui é do Orfanato Santa Luzia.
- Gostaria de falar com a irmã Julia.
- Pois não? É a irmã Júlia quem fala.
- Irmã, sou eu a Marlene.
- Dona Marlene? Puxa que alegria receber a sua ligação!
- A alegria é minha de poder ouvir a sua voz, querida irmã.
- Sabe, Dona Marlene, as nossas crianças ficaram muito contentes
com os presentes que a senhora trouxe e dizem que não veem a hora de a senhora
estar aqui para abraçá-las e ouvi-la contar aquelas lindas histórias.
- Fico muito feliz por poder contribuir para a felicidade dessas
lindas crianças que tanto me fazem bem ao coração irmã Julia. Confesso que
depois que essas crianças surgiram em minha vida, ela parece hoje ter um
significado. Lembro-me de como se fosse hoje, daquele dia em que a encontrei na
rua a pedir esmola para que este orfanato não fechasse. Aquele encontro, pode
ter certeza, foi muito importante, pois salvou a minha vida.
- Realmente dona Marlene, parece que Deus, atendendo as minhas
preces, fez com que os nossos caminhos se cruzassem. Porém, não era motivo para
a senhora querer por um fim em sua vida só por que a sua loja não ia bem mas
como a senhora me pediu, não vou mais tocar nesse assunto e nem mesmo querer
saber de mais nada sobre a sua vida. Acho que como uma verdadeira amiga, devo
me contentar em apenas saber que tenho um anjo enviado por Deus e que tanto
colabora para as nossas crianças não passarem fome e terem onde morar. A
senhora deve se lembrar de que naquela época estávamos a um passo de sermos
despejados, não é mesmo?
...
Aquela bonita moça, diante de tamanha declaração não conseguiu
mais se conter e a emoção tomou a forma de duas grossas lágrimas escorrendo em
sua sedosa pele.
Tentando se recompor continuou o
diálogo...
- Não fale assim, querida irmã. Não
faço mais que a minha obrigação, pois na verdade foi Deus quem colocou a
senhora e as minhas crianças em minha vida. Confesso que não sei mais como
viver sem a sua amizade e a de meus queridos. Mas chega de me fazer chorar e me
diga se está faltando mais alguma coisa para o nosso orfanato?
- Não dona Marlene. Não está faltando
nada, pois o cheque que a senhora nos mandou deu para encher a despensa, pagar
o aluguel e a conta de luz e ainda sobrou um bom dinheiro.
- Que bom querida irmã! Fico mais tranquila
em saber que tudo está correndo bem aí no orfanato.
- Eu sei que a senhora me disse que
não podia dar o número do seu telefone, mas se eu precisar achar a senhora como
devo fazer?
- Não se preocupe querida irmã, pois
estarei sempre ligando para a senhora. E todas as quartas-feiras estarei aí
pessoalmente com vocês. Mas, por favor, eu insisto mais uma vez, não me peça
mais o número do meu telefone ou tente localizar a minha casa, acho que a
senhora não entenderia alguns fatos da minha vida.
- Tudo bem, dona Marlene, não mais
insistirei. Só queria poder ajudá-la assim como a senhora nos ajuda. Não mais
tocarei nesse assunto, mas saiba que o carinho que nos uniu naquele dia jamais
poderá ser destruído, pois tem o amor e a mão do nosso Pai.
- Obrigado, mais uma vez, querida
irmã. Então até quarta-feira!
- Até, dona Marlene.
Como, às vezes, julgamos pela
aparência não é mesmo, caro leitor? Quem diria que aquela mulher tão insultada
pela população e até mesmo apedrejada pelo preconceito de alguns corações,
poderia praticar atos tão bons que somente os homens chamados de “bem” merecem
o adjetivo. Não sei o que ela faz naquela casa de “má fama” como dizem, mas
será que é um motivo para a catalogarmos como uma pessoa má e sem escrúpulos?
Notei em seu semblante que durante aqueles momentos em que esteve ali, falando
com aquela irmã, parecia ser outra pessoa, mais alegre e mais viva no momento
em que o meu aparelho foi colocado no gancho, senti que ela voltava a sua
triste realidade. Será (pensei com os meus circuitos) que ela não estava
naquele caminho ou naquela vida por falta de outra opção ou uma oportunidade de
mudança? Sinceramente eu não sei! Só sei que aprendi uma grande lição naquele
dia:
“Nunca mais julgar ninguém e deixar me
levar pela curiosidade. Acho que assim vou evitar de um dia também ser julgado,
como fatalmente acontecerá com aquelas pessoas que a julgaram”
Afinal:
“QUEM VÊ SOMENTE COM OS OLHOS NÃO
ENXERGA COM O CORAÇÃO”
·
Por: Marcos Ângelo Alves
·
Revisão ortográfica: Prof.ª Claudete Amaral de Melo