segunda-feira, 29 de julho de 2013

MEMÓRIAS DE UM ORELHÃO - “O que os olhos veem o coração não sente”

Há algumas quadras de onde estou localizado tem uma casa que é conhecida pela sua má fama. Segundo se comenta, lá as mulheres executam uma estranha e imoral profissão. Ouvindo esses comentários, conclui que estas mulheres deviam ter um caráter perverso sem nenhuma possibilidade de algum raio de luz penetrar em seus negros corações.
A minha curiosidade aumentava a cada dia e gostaria de poder ouvir pelo menos uma vez uma ligação feita no meu aparelho por uma delas. O que passaria naquelas cabeças? Seria mesmo verdade que a maldade ali encontrava guarida permanente? Elas seriam realmente felizes tendo tanta maldade dentro do coração? Meus circuitos quase chegavam a entrar em curto com tantas dúvidas e questões.
Certo dia fui acionado por uma mulher muito bonita de vinte e poucos anos, cabelos dourados e dona de uma cútis invejável. No início pensei ser apenas mais uma jovem cheia de vitalidade a usar os meus serviços, mas ouvi alguns maldosos comentários de algumas pessoas que passavam por mim “Essas mulheres da vida não sabem mesmo o seu lugar, insistem em frequentar lugares impróprios a sua conduta”. Pensei com meus circuitos naquele momento: “Mas que lugar impróprio seria este a que elas se referiam? Sou público e devo servir a todos independente de tudo!”. Confesso caro leitor, que nunca tinha ouvido tamanha besteira em toda a minha vida de “orelhão de rua”.
Logo concluí que o meu desejo estava prestes a se realizar, pois ali estava umas das mulheres de que tanto ouvira falar e que, certamente, através daquele diálogo que estava prestes a ter início, poderia conhecê-la.
Ao invés de retribuir as ofensas daquelas pessoas, a moça as olhou tristemente e nada respondeu. Voltou-se para o meu aparelho e discou o número desejado:
- Alô, de onde fala?
- Aqui é do Orfanato Santa Luzia.
- Gostaria de falar com a irmã Julia.
- Pois não? É a irmã Júlia quem fala.
- Irmã, sou eu a Marlene.
- Dona Marlene? Puxa que alegria receber a sua ligação!
- A alegria é minha de poder ouvir a sua voz, querida irmã.
- Sabe, Dona Marlene, as nossas crianças ficaram muito contentes com os presentes que a senhora trouxe e dizem que não veem a hora de a senhora estar aqui para abraçá-las e ouvi-la contar aquelas lindas histórias.
- Fico muito feliz por poder contribuir para a felicidade dessas lindas crianças que tanto me fazem bem ao coração irmã Julia. Confesso que depois que essas crianças surgiram em minha vida, ela parece hoje ter um significado. Lembro-me de como se fosse hoje, daquele dia em que a encontrei na rua a pedir esmola para que este orfanato não fechasse. Aquele encontro, pode ter certeza, foi muito importante, pois salvou a minha vida.
- Realmente dona Marlene, parece que Deus, atendendo as minhas preces, fez com que os nossos caminhos se cruzassem. Porém, não era motivo para a senhora querer por um fim em sua vida só por que a sua loja não ia bem mas como a senhora me pediu, não vou mais tocar nesse assunto e nem mesmo querer saber de mais nada sobre a sua vida. Acho que como uma verdadeira amiga, devo me contentar em apenas saber que tenho um anjo enviado por Deus e que tanto colabora para as nossas crianças não passarem fome e terem onde morar. A senhora deve se lembrar de que naquela época estávamos a um passo de sermos despejados, não é mesmo?
...
Aquela bonita moça, diante de tamanha declaração não conseguiu mais se conter e a emoção tomou a forma de duas grossas lágrimas escorrendo em sua sedosa pele.
Tentando se recompor continuou o diálogo...
- Não fale assim, querida irmã. Não faço mais que a minha obrigação, pois na verdade foi Deus quem colocou a senhora e as minhas crianças em minha vida. Confesso que não sei mais como viver sem a sua amizade e a de meus queridos. Mas chega de me fazer chorar e me diga se está faltando mais alguma coisa para o nosso orfanato?
- Não dona Marlene. Não está faltando nada, pois o cheque que a senhora nos mandou deu para encher a despensa, pagar o aluguel e a conta de luz e ainda sobrou um bom dinheiro.
- Que bom querida irmã! Fico mais tranquila em saber que tudo está correndo bem aí no orfanato.
- Eu sei que a senhora me disse que não podia dar o número do seu telefone, mas se eu precisar achar a senhora como devo fazer?
- Não se preocupe querida irmã, pois estarei sempre ligando para a senhora. E todas as quartas-feiras estarei aí pessoalmente com vocês. Mas, por favor, eu insisto mais uma vez, não me peça mais o número do meu telefone ou tente localizar a minha casa, acho que a senhora não entenderia alguns fatos da minha vida.
- Tudo bem, dona Marlene, não mais insistirei. Só queria poder ajudá-la assim como a senhora nos ajuda. Não mais tocarei nesse assunto, mas saiba que o carinho que nos uniu naquele dia jamais poderá ser destruído, pois tem o amor e a mão do nosso Pai.
- Obrigado, mais uma vez, querida irmã. Então até quarta-feira!
- Até, dona Marlene.
Como, às vezes, julgamos pela aparência não é mesmo, caro leitor? Quem diria que aquela mulher tão insultada pela população e até mesmo apedrejada pelo preconceito de alguns corações, poderia praticar atos tão bons que somente os homens chamados de “bem” merecem o adjetivo. Não sei o que ela faz naquela casa de “má fama” como dizem, mas será que é um motivo para a catalogarmos como uma pessoa má e sem escrúpulos? Notei em seu semblante que durante aqueles momentos em que esteve ali, falando com aquela irmã, parecia ser outra pessoa, mais alegre e mais viva no momento em que o meu aparelho foi colocado no gancho, senti que ela voltava a sua triste realidade. Será (pensei com os meus circuitos) que ela não estava naquele caminho ou naquela vida por falta de outra opção ou uma oportunidade de mudança? Sinceramente eu não sei! Só sei que aprendi uma grande lição naquele dia:
“Nunca mais julgar ninguém e deixar me levar pela curiosidade. Acho que assim vou evitar de um dia também ser julgado, como fatalmente acontecerá com aquelas pessoas que a julgaram”
Afinal:
“QUEM VÊ SOMENTE COM OS OLHOS NÃO ENXERGA COM O CORAÇÃO”

·                 Por: Marcos Ângelo Alves

·                 Revisão ortográfica: Prof.ª  Claudete Amaral de Melo

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